A raça deve ser um elemento norteador na elaboração de políticas públicas na área da Saúde. Esse foi o argumento defendido pelos participantes do 2º Seminário Saúde Negra em Debate, realizado na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), em 9 de novembro. A partir da análise de indicadores sociais da população negra, o evento mostrou que ainda é necessário questionar como o racismo atinge a vida de negros e negras no Brasil.
Ainda que o SUS assegure o direito à saúde para todos, existe discriminação racial no sistema, atestam organizações que lutam pelo direito à saúde da população negra. O debate revelou que essa parcela da população convive com o preconceito em todos os setores da vida, inclusive quando recorre aos serviços de saúde. Pesquisas demonstram que, além de apresentar os piores indicadores socioeconômicos, a população negra é a que mais apresenta mortes por causas evitáveis, como a violência, e é uma das mais vulneráveis a mortalidade materna, mortalidade neonatal e doenças circulatórias.
Mônica Oliveira, jornalista e diretora de programas da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) enfatizou que ainda hoje a ação dos profissionais de saúde é marcada pelo racismo e por representações negativas da pessoa negra, associando-a a falta de higiene, desonestidade e promiscuidade, por exemplo. Ela apresentou dados recentes do Ministério da Saúde, que indicam que 75,7% das mães brancas passaram por sete ou mais consultas pré-natal, enquanto para mães negras o índice é de 54,5%. Mônica contou que ouviu relatos de mulheres que foram a uma consulta ginecológica em que o médico sequer tocou em seus corpos. “Elas têm menor atenção do profissional de saúde por conta da sua condição de negritude e de mulher”, afirmou. Para ela, o peso do aspecto racial no atendimento aos usuários do sistema de saúde mantém a população negra com os piores indicadores sociais.
Racismo sem racistas
Mônica atribui à atuação do movimento social negro todos os objetivos alcançados junto aos governos sob o ponto de vista da promoção da igualdade racial, sobretudo em saúde e educação. “O movimento foi quem sempre demandou do Estado brasileiro aquilo que está sendo construído, pesquisado e formulado. Sem ele, não teríamos absolutamente nenhum avanço nas políticas públicas”, disse.
A diretora de programas da Seppir falou à Radis que o principal entrave para uma política de atenção à saúde da população negra é a grande dificuldade em reconhecer o racismo institucional. “O racismo atinge brancos e negros na sociedade, e as pessoas ainda resistem em assumir que ele determina a ação profissional na saúde”. Por conta disso, explicou, o sistema ainda não compreendeu a necessidade e a validade da implementação da política de atenção. “As pessoas admitem que existe o racismo, mas não que são racistas. Então, temos um país que tem racismo e não tem racistas. É como se houvesse uma certa esquizofrenia na sociedade. Vemos o racismo o tempo inteiro no outro, e é necessário que façamos uma auto-análise sobre como nós mesmos manifestamos comportamentos racistas”, disse.
Também na mesa, a epidemiologista Cheila Marina de Lima, da Coordenação Geral de Vigilância de Agravos e Doenças Não Transmissíveis do Ministério da Saúde, reforçou que os avanços do setor Saúde nas últimas décadas não foram suficientes para contemplar as demandas da saúde negra. Cheila lembrou que a falta de investimento em pesquisas sobre raça e cor compromete a capacitação de profissionais para registrar corretamente os dados nos sistemas de notificação. No momento do atendimento nas unidades de saúde, muitos deixam de preencher o quesito cor. A grande quantidade de uso da categoria sem informação atrapalha o recolhimento dos dados e a contabilização das estatísticas. Cheila acredita que a sensibilização dos profissionais responsáveis pela qualidade das informações ainda é uma grande demanda dos movimentos sociais, que não é atendida pelos gestores.
Desvantagem
A médica Dora Chor, pesquisadora da Ensp/Fiocruz na área de determinantes sociais da saúde e epidemiologia social, afirmou que se um dia pensou nas desigualdades em saúde apenas como uma questão social, hoje as interpreta de forma totalmente diferente. Graças à observação de outras pesquisas ao longo de seu trabalho, Dora passou a considerar que raça também é um importante elemento para explicar por que a população negra permanece em desvantagem nos indicadores sociais. “Numa sociedade racialmente construída como a nossa, por que usar como indicadores de posição social apenas escolaridade, renda e ocupação? Aqueles que afirmaram que a raça não deve ser considerada não me convencem”, defendeu.
Ela mostrou os resultados de um estudo feito por pesquisadores de Pelotas (RS), que acompanharam nascimentos de 1982 a 2004 e comprovaram que morrem mais filhos de mães negras do que de brancas. Em números, a taxa de mortalidade de filhos de mães brancas diminuiu de 30 por mil nascidos vivos, em 1982, para 14 por mil, em 2004; em relação às mães negras, as taxas diminuíram de 53 por mil, para 30 por mil, no mesmo período. A pesquisadora alertou ainda para as diferenças maiores na mortalidade neonatal. Em 22 anos, a redução foi de 47% para filhos de mães brancas e apenas 11% para filhos de mães negras. “Essa discrepância é uma tendência crescente que necessita de atenção especial dos formuladores das políticas de saúde”, concluiu.
Violência e morte
A mortalidade dos jovens ainda é algo que preocupa e demanda atenção da sociedade e dos governos. No entanto, para quem vê de perto essa realidade, o descaso e a banalização da violência contra a juventude, especialmente a negra, são maiores do que a preocupação. Mônica alerta: “A quantidade de jovens que têm morrido nesse país começa a abrir uma brecha na demografia. É impressionante como a sociedade brasileira naturaliza a violência e a morte dos nossos jovens negros. Isso é extremamente grave”. Para ela, o racismo determina essas mortes, já que 75% dos jovens que morrem são negros. A explicação é o recorte racial que a própria polícia faz quando acontece a abordagem: ela escolhe matar o jovem negro.
Os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM-MS) falam por si. Em 2010, 52.260 pessoas morreram vítimas de homicídio no Brasil — 27,3 óbitos para cada 100 mil habitantes. Das vítimas, 67% eram negras ou pardas.
Foram 27.977 jovens (de 15 a 29 anos) mortos por homicídio, 53% do total de vítimas. Setenta por cento desses eram de jovens negros. Em dez anos, a diferença entre o número de óbitos por homicídio entre jovens negros e não negros (brancos, amarelos e indígenas) quase chegou a triplicar. Atualmente, 12.190 jovens negros são assassinados a mais do que jovens de outras etnias.
Como enfrentar
Considerando que o maior número de homicídios se registra entre a população jovem, negra, com baixa escolaridade, residente em bairros pobres, o Governo Federal criou o Plano de Prevenção à Violência Contra a Juventude Negra. Também conhecido como Plano Juventude Viva, foi lançado em sua primeira fase em setembro de 2012, com ações no estado de Alagoas, primeiro em taxas de homicídios no país (85 para cada 100 mil habitantes), e onde 80% dos jovens assassinados são negros, de acordo com dados da Seppir, apresentados por Mônica Oliveira.
O objetivo do plano é desenvolver programas de inclusão social que visam diminuir a vulnerabilidade desses jovens a situações de violência física e discriminação. Acreditando que não é possível superá-las apenas com políticas de segurança pública, a ideia é intervir em áreas como saúde, cultura, convivência, trabalho, educação e esporte através de uma proposta de transformação dos territórios, desconstruindo a cultura e a banalização da violência, oferecendo oportunidades e garantindo direitos, além de promover a discussão e o enfrentamento ao racismo na sociedade e instituições.
“O jovem negro não morre apenas no momento em que é atingido por uma bala. Ele vive uma situação de morte lenta no decorrer da vida. É violentado na escola, na família, no sistema de saúde, pela polícia, pelos meios de comunicação”, disse Mônica, ao apresentar o plano. Ela explicou que esse contexto opera na redução da auto-estima e da perspectiva do jovem negro. “Então, eles são mais facilmente aliciados para o tráfico de drogas ou vivem situação de grande desemprego e pobreza”, afirmou.