LONDRES — Devagar e em silêncio, o vírus da hepatite C vai provocando um estrago no organismo. Quando detectado, quase sempre já se instalou de forma crônica, uma condição que, em 20% dos casos, resultará em cirrose. Até agora, o tratamento disponível para enfrentar o HCV, descoberto apenas em 1989, tem taxa de resposta que varia de 50% a 75%. Os inúmeros efeitos colaterais — semelhantes aos de uma forte gripe — e a longa duração do regime, de um ano, muitas vezes afastam os pacientes. Contudo, novas moléculas desenvolvidas por diferentes laboratórios farmacêuticos estão prestes a mudar essa realidade.
Estudos clínicos apresentados no Congresso Internacional do Fígado, realizado em Londres, comprovaram que os novos medicamentos têm índice de cura de até 100%, caso dos pacientes não cirróticos. Os compostos, que devem chegar ao mercado brasileiro entre o fim deste ano e o início de 2015, beneficiaram particularmente um grupo de pessoas para as quais há poucas opções terapêuticas: as que já apresentam graves danos no tecido hepático.
Um dos testes divulgados no evento, desenvolvido pelo laboratório Abbvie com 380 pacientes cirróticos, constatou que 91,8% dos participantes submetidos ao tratamento durante 12 semanas não tinham mais o vírus circulando no organismo depois de três meses, quando o exame virológico é refeito para verificar a eficácia. Os que tomaram o coquetel oral por 24 semanas alcançaram índice de cura de 95,9%. “Agora, é possível reverter a cirrose”, comemorou o médico hepatologista espanhol Juan Carlos López Talavera, executivo da Abbvie. “A hepatite C é a primeira doença crônica viral que pode ser curada”, afirmou.
No total, os estudos de fase três — quando a eficácia de um medicamento é testada em humanos — do laboratório incluíram 2,3 mil pacientes (de 25 países, sendo que o Brasil não entrou nos experimentos) com o genótipo 1 do HCV. Esse é o perfil genético mais prevalente do vírus que, no Oriente Médio e em alguns países asiáticos e africanos, aparece em outras cinco versões. Tanto os regimes terapêuticos da Abbvie quanto os da Gilead e da Merck, também apresentados no congresso, agem diretamente no micro-organismo, uma novidade no tratamento da hepatite C. A terapia-padrão disponível hoje atua no sistema imunológico, não combatendo o vírus de frente.
Outra vantagem dos antirretrovirais é a duração e a forma de tratamento. Enquanto o interferon é injetado no músculo semanalmente, durante um ano, os medicamentos da nova geração são orais e devem ser ingeridos diariamente por, em média, 12 semanas. Além disso, os efeitos colaterais observados nos testes clínicos da Abbvie foram pequenos, não provocando a descontinuidade do tratamento, um problema comum entre pacientes submetidos à terapia com interferon.
As três adversidades mais comuns foram fadiga (até 46,5% dos pacientes), dor de cabeça (até 30,8%) e náusea (20,3%), relatadas por participantes com e sem cirrose hepática. “O tempo dos efeitos colaterais chegou ao fim. Esses tratamentos foram muito bem tolerados. Trata-se de uma transformação real para os pacientes de hepatite C”, definiu Charles Gore, diretor executivo da organização não governamental World Hepatitis Alliance, composta por pacientes da doença.
Para o médico brasileiro Evaldo Stanislau, hepatologista do Hospital das Clínicas de São Paulo, integrante do Comitê Consultivo Técnico de hepatites do Ministério da Saúde e consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS), os novos medicamentos são, de fato, revolucionários. Em termos de tratamento antirretroviral, ele compara esse momento à 11ª Conferência Internacional sobre Aids, realizada no Canadá, em 1996. Na ocasião, foi apresentado o coquetel de drogas que inibem o desenvolvimento do HIV e transformaram a Aids, então praticamente uma sentença de morte, em doença controlável e crônica. “Esse congresso de Londres é equivalente. Ele transforma a hepatite C, que era uma doença com taxa de cura bastante restrita, em uma doença curável”, diz.
Acessibilidade
Staninslau diz que, enquanto a ciência cumpriu sua parte, o grande desafio, agora, será tornar a terapia acessível. Os executivos das farmacêuticas não falam em custos. Para comparação, porém, o tratamento completo com o Sovaldi, antirretroviral da nova geração produzido pela Gilead que já foi aprovado nos Estados Unidos, custa US$ 84 mil. O médico brasileiro lembra que, como há três laboratórios produzindo drogas semelhantes, haverá competição para conquistar os governos. “Não adianta ter um medicamento revolucionário se o preço não for acessível”, afirma.
Ele observa que o Brasil, que já custeia o tratamento de hepatite C pelo Sistema Único de Saúde (SUS), foi um dos primeiros países a disponibilizar o interferon peguilado, versão aprimorada do medicamento, na rede pública. Por isso, acredita que haverá grande interesse na oferta dos novos antirretrovirais pelo SUS. Contudo, de forma responsável. “Não será a qualquer preço. Tem de haver uma negociação justa para que essa seja uma política de saúde sustentável para todos.” Staninslau lembra que a própria OMS sinalizou que os países devem lançar mão de mecanismos legítimos para que a população tenha acesso aos novos tratamentos — incluindo a quebra de patentes.
Juan Carlos López Talavera, executivo da Abbvie, garantiu que a farmacêutica vai negociar com todos os países interessados em oferecer os antirretrovirais. Ele lembrou que, nos Estados Unidos, o custo de um transplante de fígado de um paciente cirrótico, incluindo os tratamentos antes e depois da cirurgia, é de US$ 1 milhão. “Em cinco anos, metade dessas pessoas terá cirrose novamente. E os novos medicamentos podem reverter a cirrose.”
A repórter viajou a convite da Abbvie
Fonte: Cebes