Na Semana da Criança, a melhor notícia que poderíamos ter é a de que a transmissão vertical (TV) do HIV/aids, ou seja, a infecção de bebês pelas mães durante a gravidez, o parto ou a amamentação, está totalmente zerada. Ou estará em 2015, como prevê a meta do Programa Conjunto das Nações Unidas para o HIV/Aids (Unaids). Mas, embora a incidência da TV venha diminuindo significamente ao longo dos anos, ainda vamos levar mais tempo para chegar lá. É o que preveem gestores, médicos e ativistas ouvidos pela Agência Aids. Eles apontam a dimensão do país, a diversidade e a falta de investimento no combate à doença como fatores que impedirão o país de chegar à meta.
Segundo dados do último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, a incidência de aids em menores de 5 anos em 2011 ficou em 5,4 para cada 100 mil habitantes, o que representa 745 casos notificados. A média se mantém mais ou menos estável desde 2006. O mesmo relatório mostra que em 2011 foram 386 casos de aids notificados na categoria TV. Número bem menor do que os 867 de 2001. Outro dado positivo é a redução da mortalidade: em 2011 foram 45 óbitos por aids em menores de 5 anos contra 212 no ano 2000.
“Embora seja uma meta que a gente queira alcançar, não será possível se chegar a ela até 2015”, diz Fábio Mesquita, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. “Há cidades em que a meta foi atingida muito antes de o compromisso do Unaids ser assinado, como é o caso de São Paulo, de Santos. Mas será impossível chegar ao sucesso absoluto em todo o Brasil.”
Diversas influênciasMarinella Della Negra, infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, diz que, embora tenha muito a melhorar, o Brasil está evoluindo na questão da TV. “Temos muitos recursos disponíveis: os antirretrovirais, o consenso de normas. Mas o Brasil é muito grande, o que torna difícil, inclusive, a análise dos dados”, diz Marinella. Para a médica, a gestante ter consciência da importância do teste de HIV/aids e os serviços de saúde pedirem que ela o faça são dois fatores que podem levar, não ao cumprimento da meta de 2015, mas para bem perto dele.
A infectologista acrescenta que as falhas que impactam nas transmissões dificilmente estão isoladas. E, se a prevenção, o diagnóstico e o atendimento andam bem, só pode haver uma diminuição na transmissão. “Se os números aumentam, é sinal de que algo não está funcionando, mas a análise é mais complexa, os dados são influenciados por muitos fatores. O desafio é que, em cada local, se faça uma autocrítica e um estudo para ver o que está acontecendo, onde está o erro”, aconselha.
O Boletim Epidemiológico de 2012 indica também uma tendência de aumento na taxa de detecção do HIV em gestantes nos últimos 10 anos. Será que as mulheres soropositivas estão engravidando conscientemente, agora mais confiantes no sucesso dos tratamentos? Marinella Della Negra não acredita nisso. “ Elas já chegam grávidas no serviço de saúde e depois descobrem que têm HIV. O aumento na taxa de detecção nos faz pensar: foi o diagnóstico que melhorou ou os casos aumentaram? Todos os fatores devem ser analisados se quisermos chegar a uma real melhora.”
Fábio Mesquita diz que o fato de ter mais mães soropositivas querendo engravidar não tem associação com o aumento de gestantes infectadas. “Hoje, temos técnicas de controle que são muito mais efetivas quando a mulher já sabe que é soropositiva antes do que quando descobre no meio da gravidez”, explica Mesquita. “Evidentemente, as ações de aumento de diagnóstico levadas a cabo na atenção básica (pré-natal) através da estratégia da Rede Cegonha podem levar a um aumento na notificação de casos em gestantes.”
José Araújo Lima, diretor do Espaço de Prevenção e Atenção Humanizada (EPAH), ressalta que a meta de zerar a TV está ameaçada em todo o Brasil e no mundo. “No estado de São Paulo, fizemos grandes avanços, estamos muito próximos de atingir a meta do Unaids. Ou estávamos, porque passamos por um gargalo no sistema de saúde.” Araújo aponta a dificuldade de as mulheres terem acesso ao pré-natal como um impedimento. “ E não é só no Brasil, não. Todo o mundo vai estender a meta por mais uma década, pois não há uma política consistente para cumpri-la.”
Incidências inexplicáveisOs dados da TV no Brasil mostram significativas diferenças regionais. O Rio Grande do Sul apresenta a maior taxa de incidência em menores de 5 anos, com 16,5 casos a cada 100 mil habitantes, número que é mais que o triplo da média nacional. Depois, vêm Espírito Santo (12,6), Santa Catarina (10,5), Rio de Janeiro (10,1) e Rondônia (10,1). O estado com a incidência mais baixa é o Tocantins, com 1,6 casos a cada 100 mil habitantes.
Os estados da região sul, especialmente o Rio Grande do Sul, se destacam no cenário nacional da epidemia por suas altas taxas de incidência e de mortalidade por aids, o que também reflete nos dados relativos à TV. Por exemplo, a média nacional de detecção de HIV em gestantes é de 2,3 a cada mil nascidos vivos. No Rio Grande do Sul, o número é de 8,4. Em Santa Catarina, de 6.
Sempre reforçando a complexidade de se ler os dados da doença no Brasil, a infectologista Marinella Della Negra questiona. “O sul não é uma das regiões mais carentes. Então, o que explica essa taxa alta de TV? Temos lá um problema de gestão? De diagnóstico? É difícil analisar. O que é certo é que algo lá não está funcionando.”
Fatores do sulO coordenador do Programa Estadual de DST/Aids do Rio Grande do Sul, Ricardo Charão, assume que a situação no estado é preocupante. Segundo ele, a capital Porto Alegre apresenta índices consideravelmente maiores que os nacionais e do que o resto do estado há cerca de 10 anos.
“As causas são multifatoriais. Temos, principalmente, a dificuldade de acesso da população às redes de atenção. As mulheres chegam tarde nos serviços, sem terem feito pré-natal e, sendo HIV positivas, é claro que a chance da TV é maior”, diz ele.
Charão conta que a qualidade do pré-natal também é um problema no estado. “Os dados mostram que as gestantes fazem em média seis ou sete consultas no pré-natal, o que é um número bom. Mas, aparentemente, a quantidade não é acompanhada da qualidade”. Segundo o gestor, o investimento agora é no sentido de garantir que etapas fundamentais, como o teste rápido para o HIV e a sífilis, o monitoramento durante a gestação e o cumprimento de todos os protocolos sejam cumpridos.
“O caminho é reforçar a saúde básica para melhorar o atendimento à gestante com o vírus diz diz Carlos Alberto Duarte, vice-presidente do Grupo de Apoio a Prevenção à Aids (Gapa). Mas, de maneira nenhuma, vamos cumprir a meta em 2015, até porque o estado, historicamente, investe pouco em saúde. Isso traz consequências. Desmantelar serviços é rápido, mas reerguê-los e reestruturá-los leva tempo. Não vamos reverter esse quadro em um ou dois anos.”
O coordenador estadual Ricardo Charão concorda que houve um “desinvestimento” na aids e um certo abandono institucional. “Mas não foi só no Rio Grande do Sul, vemos essa situação no Brasil e nos outros países”, defende Ricardo. Charão frisa que os indicadores do estado são resultado de um processo histórico e as taxas de hoje, reflexo de políticas de muitos anos. “Não vivemos num paraíso, mas o Rio Grande do Sul tem sim compromisso com a política de aids”, diz ele. “A meta da coordenação estadual é reduzir a transmissão vertical no mínimo 10% a cada ano.”
Risco na amamentaçãoJá em Santa Catarina, o problema foi o uso de estratégias que não deram certo, segundo Vanessa Vieira da Silva, da gerência do Programa Estadual de DST/Aids. Ela diz que de 2004 para a frente a linha adotada pelo Programa não foi produtiva. “Em 2012, houve a percepção disso e a mudança.” Vanessa diz que, para os gestores do estado, embora os números de transmissão do HIV sejam preocupantes, a sífilis congênita preocupa mais. Segundo ela, a doença é totalmente evitável, tem tratamento barato e, mesmo assim, apresenta números altos, com tratamento inadequado no pré-natal.
“Quanto à transmissão vertical, estamos inserindo o teste rápido como diagnóstico precoce para diminuir o número de casos”, continua Vanessa. Ainda no que diz respeito ao HIV, ela Vanessa conta que, em Santa Catarina, a transmissão na amamentação vem desenhando um cenário preocupante. “Os serviços têm identificado mulheres soropositivas que fizeram tratamento e não transmitiram o HIV durante a gestação e o parto, mas houve uma transmissão posterior, pois elas amamentaram o bebê.”
Vanessa também diz perceber o aumento do número de mulheres soropositivas querendo engravidar, confiantes no avanço da terapia antirretroviral e destaca a melhora na qualidade do diagnóstico. “Tanto é que a nossa previsão para 2013 é de que a transmissão tenha diminuído, mas o número de novos casos venha a aumentar.” Ainda assim, admite não ser possível zerar a TV em 2015. “Nossa meta é diminuir esse número para 5 a cada 100 mil habitantes.”
Possíveis mudanças“Duas regiões em particular, o Norte e o Rio Grande do Sul, a partir do segundo semestre, terão ações focalizadas do Departamento”, promete Fábio Mesquita. “Essas ações poderão dar mais clareza para entender por que essas regiões têm uma disparidade em relação às outras e como nós podemos intervir na TV e em outros indicadores.”
Para finalizar, Mesquita conta que a versão atualizada em 2012 do documento “Recomendações Para Terapia Antirretroviral em Adultos Infectados pelo HIV” traz uma nova recomendação de tratamento para gestantes, que é a de indicação de tratamento independentemente do nível de CD4 (contagem das células que protegem o organismo de doença) e a manutenção da terapia após o parto. “Isso vai em direção ao que a Organização Mundial da Saúde (OMS) está chamando de B-Plus, a alternativa de começar o tratamento e não interromper nunca mais. Não apenas pensando na criança, mas também na mãe”, conclui Mesquita.
Nana Soares